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01 outubro 2009

HUMOR - Irmãos (091001-001)

- De vez em quando eu penso neles,
- Quem?
- Nos espermatozóides...
- De vez em quando você pensa nos seus espermatozóides?
- Nos meus não. Nos do meu pai.
- Você está bêbado.
- Na noite em que eu fui concebido - suponho que tenha sido um noite - eu era um entre milhões de espermatozóides, Mas só eu cheguei ao óvulo de mamãe. Ou será bilhões?
- Acho que é óvulo mesmo.
- Não. Os espermatozóides. É milhões ou bilhões?
- Ahn... Não sei.
- Não importa. Milhões, bilhões. Só eu me criei, entende? Por acaso. Isto é mais assombroso. A gratuidade da coisa. Havia milhões, bilhões de espermatozóide junto comigo e só eu, entende? Só eu fecundei o óvulo. Não é assombroso?
- É.
- Você acha mesmo?
- Acho.
- Podia ser qualquer um, mas fui eu. Por acaso.
- Amendoim?
- Hein? Obrigado. Agora, me diga. Por que eu? A gratuidade da coisa. Só eu fecundei o óvulo, virei feto, nasci, me criei e estou aqui, neste bar, de gravata, bebendo. Agora me diga, o que é isto?
- É como você diz. A gratuidade da coisa. Não, não. Isto que eu estou bebendo. É, ahn, uísque.
- Uísque. Pois então. Aí está.
- Ó Moacir, vê outro aqui. O rapaz está precisando.
- Um brinde!
- Um brinde.
- A eles!
- Quem?
- Aos espermatozóides que não chegaram ao óvulo de mamãe. Aos companheiros. Aos bravos que cumpriram sua missão e não viveram para comemorar. Aos que perderam a viagem. Aos meus irmãos!
- Aos meus irmãos!
- Meus irmãos. Você não estava lá.
- Aos seus irmãos!
- Aos milhões, bilhões que se sacrificaram para que eu pudesse viver.
- Salve.
- Agora me diga uma coisa.
- Duas. Digo duas.
- Cada espermatozóide é uma pessoa diferente, certo? Quer dizer. Em outras palavras. Se outro espermatozóide tivesse completado a viagem, não seria eu aqui. Ou seria?
- Depende.
- Não seria. Seria outra pessoa. Outro nariz, outras idéias. Talvez até torcesse pelo América. Uma mulher! Podia ser uma mulher. Certo?
- Não vamos exagerar..
- E outra coisa. O que passou, passou. Não pense mais nisso.
- Mas eu penso. De vez em quando eu penso. Os meus irmãos que não nasceram. Que nomes eles teriam? Eduardo, Gilson, Amaury, Jessica...
- Marco Antônio...
- Marco Antônio... Imagine, um deles podia ser o ponta-direita que o Brasil precisava em 74. Eu me sinto culpado. Você não se sente culpado?
- Bom, eu tenho 11 irmãos.
- Aí é diferente.
- Por quê?
- Não sei. Só sei que entre milhões, bilhões de espermatozóides, todos com os mesmos direitos, só eu me criei. Por acaso. Agora me diga, o que é isso?
- É uísque.
- Não. É a gratuidade da coisa.
- Não sei...
- Você está bêbado.

Fonte: Luís Fernando Veríssimo em O analista de Porto Alegre. L&PM Editores, 1981, p. 19-22

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